Quem é Ana Lagôa
ARQUIVO ANA LAGÔA Política militar na internet João Roberto Martins Filho (*) MARCO TERRANOVA / JORNAL DO BRASIL Ana Lagôa |
A partir de agora, quem estiver interessado em conhecer melhor os usos e os abusos do período militar brasileiro (1964-1985) – ou outros assuntos relacionados ao papel atual das Forças Armadas e a temas estratégicos em geral – pode começar pela Internet. O Arquivo de Política Militar ‘Ana Lagôa’, da Universidade Federal de São Carlos, acaba de inaugurar uma versão mais elaborada de sua página na rede, no endereço <www.arqanalagoa.ufscar.br>. Por enquanto, o site tem informações sobre o acervo: mais de 15 mil recortes de jornal, 600 livros, 400 periódicos, 200 documentos militares, 6.000 laudas de jornal originais etc. Tudo catalogado e organizado em banco de dados, por tópicos de interesse.
A origem do acervo foi uma doação feita pela jornalista Ana Lagôa, que guardou tudo o que podia sobre o assunto, desde 1968, e principalmente no período dos governos Geisel e Figueiredo, durante o qual, como jornalista da Folha de S.Paulo, foi repórter setorista da área militar, em Brasília.
No final 1995, o material foi transferido para o Departamento de Ciências Sociais da UFSCar, em São Carlos, SP. Logo se formou uma equipe, composta por mim, atual coordenador do arquivo, e mais dois colegas do Departamento de Ciência da Informação – Cristina e Massao Hayashi. Com o auxílio de bolsistas, mergulhamos no trabalho de elaborar um banco de dados, organizar e catalogar o material.
Em três anos – apesar da falta de recursos nas universidades federais –, o grosso do trabalho estava realizado. No começo de 1999, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) passou a incentivar o projeto, no seu programa de apoio a arquivos e bibliotecas.
Atualmente, além do acervo de Ana Lagôa, o AAL dispõe de material sobre os governos Castelo e Branco e Costa e Silva – cerca de 400 artigos –, bem como outros 400 textos sobre assuntos militares, documentos recentes sobre as Forças Armadas, vídeos e gravações de palestras e livros, provenientes de doações e do material antes colecionado pelo coordenador do arquivo.
Os planos para 2000 incluem distribuir na internet todas as listas de material disponível, permitindo aos pesquisadores solicitar cópias por e-mail. No futuro, o arquivo pretende construir prédio próprio e incorporar outros acervos. No momento, temos muito interesse em receber livros e revistas relativos ao assunto. Se você tem ou conhece alguém que disponha de coleções de periódicos militares ou jornais e revistas datados do período do governo militar, entre em contato com o AAL no endereço abaixo.
(*) Cientista político, professor da Universidade Federal de São Carlos, coordenador do Arquivo Ana Lagôa
Como entrar em contato:
Universidade Federal de São Carlos
Centro de Educação e Ciências Humanas
ARQUIVO ANA LAGÔA
Rodovia Washington Luis, Km 235
13.565-905 – São Carlos – São Paulo – Brasil
Fone: (0xx16) 260-8369 (DCSo)
Fone: (0xx16) 260-8374 (DCI)
Fax: (0xx16) 260-8353
E-mail: analagoa@power.ufscar.br
URL: http://www.arqanalagoa.ufscar.br
Quem é Ana Lagôa
Maria Cristina P. Innocentini Hayashi (*)
No Arquivo Ana Lagôa está exposta a trajetória de uma jornalista que, como milhares de brasileiros, viveu as conseqüências de um governo militar. Sua profissão exigia uma convivência muito próxima das transformações que vinham ocorrendo na sociedade.
Ana Lagôa iniciou a construção de seu acervo com 15 anos de idade. Em 1969, aos 18 anos, começou a trabalhar como repórter, na sucursal paulista de O Globo, enquanto cursava o primeiro ano da Faculdade de História na Universidade de São Paulo. Foi repórter de Geral no Globo, na Última Hora, no Correio da Manhã e na sucursal da Folha de S. Paulo, no Rio de Janeiro, até 1974, quando mudou-se para Brasília. Por alguns meses continuou na cobertura da cidade pelo Jornal de Brasília, até voltar para a Folha. Em 1978 transferiu-se para a sucursal carioca da mesma Folha, onde ficou até seu fechamento, em 1980. Passou alguns meses na sucursal de O Estado de S. Paulo, e depois do episódio do Riocentro deixou a grande imprensa. Formou-se em História pela UFRJ e trabalhou durante cinco anos como assessora de imprensa do Ibase. A partir de 1988, de volta a São Paulo, trabalhou por oito anos como editora da revista Nova Escola. Em 1998 defendeu tese de mestrado na área de Educação.
Foi sua formação histórica que a fez ter noção do real significado de um documento e de como selecionar a informação. Ana Lagôa formou um vasto arquivo de política militar que tomou forma quando ela trabalhou como repórter setorista da área militar na Folha, durante os anos da ditadura.
Laudas datilografadas
Naquele tempo, poucos jornalistas conseguiam ser credenciados para cobrir os ministérios militares. Era uma situação dúbia: ao mesmo tempo em que o credenciamento era concedido a quem nunca tinha sido preso, perante a categoria o profissional era visto com suspeição. A jornalista conta que era casada com um diplomata e aceitou a vaga apenas porque, face à ida do marido para o exterior, teria uma breve passagem pelo setor. A área a cobrir, no caso, não tinha muita importância, já que sua carreira seria interrompida. Só que, tão logo assumiu o posto, a repressão fez várias prisões, incluindo-se a que resultou no assassinato de Vladimir Herzog.
Foi quando Ana Lagôa sentiu que "estava dentro da toca do leão". Esse momento marca a tomada de consciência dos jornalistas credenciados. Eles perceberam que a cobertura dos fatos deveria ir além da simples coleta de press-releases que se fazia todos os dias com hora marcada. A jornalista explica que, a partir daí, começou a fase mais fértil da cobertura, estabelecendo-se "com a área uma relação de extremo profissionalismo, mas também uma acirrada guerra de informações e contra-informações".
Nos anos subseqüentes à morte de Herzog até a bomba do Riocentro, a área militar foi tratada como uma fonte histórica de informações sobre o funcionamento dos governos militares, seu jogo de forças, sua política interna, seus projetos e suas contradições. O material coletado, cada entrevista feita, publicada ou não, livros e apostilas – tudo foi guardado para um futuro estudo. A jornalista também fez um exaustivo trabalho de recortes de jornais, que resultou num arquivo pessoal em que se pode conhecer fases do confronto do movimento social com o governo militar. Grande parte das matérias de sua autoria, publicadas pela Folha de S. Paulo, estão no Arquivo Ana Lagôa, em laudas datilografadas (carbono do original) ou recortes.
No período da abertura, Ana Lagôa cursou pós-graduação em Ciência Política, com o objetivo de dar um caráter científico ao trabalho, talvez publicar um livro. Fez extensa pesquisa sobre o nacionalismo nas Forças Armadas, que seria o tema de sua tese, infelizmente não concluída.
Ao realizar a doação de seu arquivo à UFSCar, Ana Lagôa pensou ter encontrado "uma forma de dar sentido ao tão penoso trabalho daqueles seis anos" de sua vida profissional.
(*) Professora do Departamento de Ciências da Informação da UFSCar. O texto apresenta a jornalista no website Arquivo Ana Lagôa
ENTREVISTA/ANA LAGÔA
"Deixei meu grafite no mundo"
Marinilda Carvalho
Marco Terranova/Jornal do Brasil
Ana Lagôa
Ana Mascia Lagôa é bonita, charmosa, elegante, inteligente, culta, bem-informada, uma profissional completa, educada, formada e pós-graduada em escola pública – aquela escola pública que Anísio Teixeira sonhou que forjaria um dia os brasileiros de um grande país. Em 1999, aos 48 anos, 30 de profissão, Ana aceitou o convite de Noenio Spinola, então editor do Jornal do Brasil, para desenvolver um caderno de educação e trabalho que registrasse as transformações sociais do momento. Acabou inovando a cobertura da área, produzindo um suplemento dominical pioneiro que reproduz o angustiante debate travado em todo o mundo sobre o futuro dos jovens na era neoliberal globalizada – futuro especialmente incerto numa nação periférica sem caminhos próprios.
No domingo, tomando água de coco num quiosque da Praia de Ipanema, no Rio, sob um guarda-sol que a protegia de uma chuvinha com cara de garoa, velha conhecida desta paulistana do bairro de Santana, ela falou de outros pioneirismos seus, mas de tempos dolorosos, em que escrever era um ofício desprovido de charme, recheado de entrelinhas, velado por medos e suspeitas: os anos que passou cobrindo a área militar em plena ditadura. Exercício diário de convivência com generais e coronéis que posavam de governantes de direito em Brasília, quando sua força estava de fato nos porões, torturando e assassinando.
Esta entrevista, sacudida por risadas nervosas e molhada de lágrimas (lembrar coisa feia machuca), visa registrar que neste finalzinho de 1999 Ana comemora três décadas de jornalismo com um feito histórico: seu imenso arquivo de matérias, livros e recortes de jornal sobre a ditadura militar, que ela começou a construir aos 15 anos e que em 1996 doou à UFSCar, está finalmente disponível para pesquisa pública [ver abaixo onde e como]. Um raro arquivo de jornalista, povo acostumado a ver no resultado final de seu trabalho apenas um bom embrulho de peixe.
Quem a conhece sabe o que significou esta doação: liberdade. Emocionalmente, o arquivo pesava como uma faca no peito. Fisicamente, dava um trabalho de cão. Em sua casa, onde uma gata reina, comprar uma estante nova acabava sempre em festa: "Graças a Deus, menos uma caixa no chão", dizia, no sotaque italiano que surge do nada em grandes alegrias e grandes raivas. As caixas se foram, o legado é permanente: "Deixei meu grafite no mundo."
***
Por que você começou a arquivar coisas aos 15 anos? Era influência da cultura européia da preservação, já que sua família é italiana?
Ana Lagôa –
Isso também. Minha família tinha mania de guardar. Na casa da família da minha mãe havia porões repletos de coisas, verdadeiros almoxarifados. Nada era jogado fora, nada era descartável, tudo era reciclável. Era a cultura da casa. Coisa de um povo que passou muita necessidade, perdeu tudo que tinha, veio pra cá e começou de novo. Mas comecei a recortar jornal em 1966 porque corria a notícia de que os militares estavam destruindo as bibliotecas dos sindicatos em São Paulo, das escolas, e me dava aquele medo mitológico do "queimar livros". Eu temia que fossem destruir os jornais também, e aí não ficaria nenhum registro escrito para a história. Então, economizava o dinheiro do lanche para comprar jornal, e recortava tudo. Separava por assunto em pastas e guardava. Por exemplo, eu tinha tudo o que saiu nos jornais sobre o Chile, até a morte do Allende em 1973. Instintivamente eu sabia que algo importante estava acontecendo lá. Além disso, eu estudava numa escola construída para fazer do Brasil um grande país.
Que escola era essa?
A.L. –
Colégio Estadual Dr. Octávio Mendes, uma escola anisiana [referência ao educador Anísio Teixeira], que oferecia uma cultura clássico-humanística pesada. Lia-se Platão e Aristóteles aos 13 anos. Podíamos não entender nada, mas líamos, e aquilo ficava registrado nos arquivos da cabeça. Eu era filha de operário, mas tive acesso numa escola pública a essa cultura ampla que é a base de tudo. Meu professor de História era meu guru. Quer dizer, foi um conjunto de fatores: a cultura doméstica de valorizar a memória, a escola anisiana, mais o medo mitológico de perder o registro dos fatos, tudo isso me levou a começar o arquivo. Era o instinto do narrador que o Walter Benjamin registrou, de contar e recontar, contar e recontar.
E tudo isso ficava em sua casa?
A.L. –
É, para desgosto geral. Especialmente dos maridos e das transportadoras, porque a cada mudança eram caixas e caixas de pastas. Quando fui trabalhar em redação era uma baba, porque tinha os jornais à mão, podia cortar tudo sem precisar comprar. Na Geral, minhas matérias sobre qualquer assunto tinham background completo. Por exemplo, se eu fosse fazer matéria sobre o Arrelia usava minha pasta de palhaços e circos. Tinha uma minipesquisa particular. Também cedia arquivos aos colegas. Depois que comecei a cobrir a área militar, fui me desfazendo aos poucos das pastas de assuntos gerais.
Como foi esse peso de ser "setorista da área", como se dizia na época em Brasília?
A.L. –
Eu comecei a cobrir a área no meio do ano, na sucursal da Folha, depois de passar pelo Jornal de Brasília. Não dava muita importância, porque iria logo para o exterior com meu marido diplomata. Mas em outubro de 1975 o Vladimir Herzog foi preso e assassinado no DOI-Codi em São Paulo. Minha melhor amiga também estava lá e isso me abalou muito, pois já havia perdido outros amigos desde o fim do colegial. As prisões de outubro de 75 provocaram então uma mudança histórica na cobertura militar, tanto em mim quanto em dois colegas, do Estadão e do JB, Jorge Honório e Zenaide Azeredo. Passamos a buscar os fios das meadas. Tudo era checado e rechecado. Começamos instintivamente a fazer jornalismo investigativo, interpretando e confirmando qualquer informação, qualquer release, até uma simples mexida de olho de um informante.
E isso era consciente?
A.L. –
Não, só percebi isso tempos depois. Na época, nós apenas fazíamos.
Era a época do
off, das entrelinhas, dos textos possíveis.
A.L. –
Era horrível, um gesso total. Foram seis anos de offs, matérias em linguagem cifrada que só os iniciados entendiam, cuidado com cada palavra. As pessoas cochichavam nas redações, nos bares, nas festas, amigos de amigos eram vistos com suspeita até provarem ser confiáveis, ninguém ia para casa sozinho, se ia era obrigado a telefonar quando chegasse. Se não telefonasse alguma coisa tinha acontecido. O mais incrível é que quem cobria a área era visto com desconfiança, embora estivéssemos trabalhando em condições duríssimas para descobrir e contar o que acontecia. Conseguimos criar um laço de cumplicidade, eu, o Jorge Honório e a Zenaide, uma correria frenética atrás de informações, às vezes de simples sinais. Nossa fala era permeada de códigos: "Vou checar a fonte azul [Aeronáutica], você ouve a verde [Exército]". As prisões se sucediam, e além de apurar matéria tínhamos que dar um jeito de descobrir informações sobre colegas presos.
Todo mundo dava sumiço em material que a repressão considerava "subversivo". E o seu arquivo? Onde você guardava, sendo então casada com diplomata?
A.L. –
As pastas ficavam na redação, os livros em casa. Não me desfiz de nada, mesmo quando os amigos mais próximos foram presos. Pode parecer heróico, mas pós-facto acho que era suicídio mesmo, vontade de estar com eles. A única coisa que se perdeu foram os panfletos da adolescência, do tempo do 477 [o decreto-lei que engessou a atividade política nas universidades], das passeatas, que eu e uma amiga guardamos porque achamos que um dia alguém ia querer estudar aquilo tudo, mas enterramos num sítio e o tempo reciclou, sumiu tudo na terra. Eu nunca fui presa ou interrogada, não pertencia a nenhuma organização, então fiquei fora. Só tiramos o arquivo de casa na época da matéria sobre os 13 mortos [ver abaixo], porque ali era uma cartada arriscada e envolveria parentes e pessoas próximas.
Em sucursal não era preciso bater matéria com cópia, como em sede de jornal, porque os textos iam por telex.
Por que você batia com carbono?
A.L. –
Eu guardava uma cópia para o meu arquivo.
E como era bater matéria sem lide explícito?
A.L. –
Eu batia relatório. Era muito novinha, tinha 24 anos. Chegava à redação da sucursal e contava tudo o que conseguia apurar ao Leleco, Haroldo Cerqueira Lima, o chefe da sucursal. Um grande jornalista, um homem íntegro, que suportou um cargo de chefia em Brasília sob as pressões daquela fase sem jamais descambar para a direita. Sem nunca abandonar o afeto. Acho que ele levou a máxima do Che ao pé da letra. Encarava as feras, sem perder a ternura. Ninguém lembra dele hoje, ficou doente, se aposentou. Quem perdeu foi a imprensa brasileira e os jovens jornalistas, que ficaram privados da sua experiência magnífica, de um amor enorme pelas pessoas e pelo trabalho. Ele me ensinou a trabalhar. Depois de ouvir tudo, de avaliar e interpretar tudo comigo ele dizia: senta e escreve. Eu batia então o que chamávamos de relatório, uma prática comum naquela época a todas as sucursais. Com base no meu relatório, Leleco escrevia depois a matéria possível. Esses relatórios eram enviados à sede da Folha em São Paulo por vários meios: alguns, menos complicados, por telex. Outros eram lidos pelo telefone, numa linha segura. De 15 em 15 dias, coleções desses relatórios eram levadas pessoalmente pelo Leleco a São Paulo, para o velho Frias ler.
E quando você começou a escrever as matérias?
A.L. –
Só em 1976. É importante lembrar que naquele tempo (que expressão horrível...) repórter novato não tinha essa compulsão de sair fazendo matéria principal, assinar. E as chefias tinham paciência e tempo para sentar do lado, ensinar. Também é bom lembrar que não se malhava em ferro frio. Eles investiam em quem dava pro negócio. Minha primeira matéria feita sozinha, como setorista, assinada, foi uma dominical sobre o projeto de centralização de poder do Geisel. Havia uma discussão feroz sobre se o Geisel estava centralizando para abrir, se estava centralizando para fechar. A certeza de que ele estava abrindo se confirmou quando ele demitiu o general Ednardo D´Ávila Melo [do comando do 2º Exército] depois da morte de Manoel Fiel Filho, em janeiro de 76, no mesmo DOI-Codi da Tutóia onde morrera o Vlado [e, em outubro, ministro do Exército general Sylvio Frota].
Essas matérias analíticas eram de importância fundamental.
A.L. –
É, porque davam as linhas de ação dos militares, via-se quem era aliado de quem, os rumos possíveis do processo da ditadura... e tudo nas entrelinhas. Interpretar as promoções dos generais era um rito cheio de mensagens simbólicas. Passei quatro anos – 74, 75, 76 e 77 – trabalhando assim em Brasília. Até que em 1978 fui para a sucursal da Folha no Rio. Consegui a transferência porque Alberto Dines, que era o chefe da sucursal, achou que era importante cobrir o processo da sucessão, e minhas fontes estavam no Rio: Euler Bentes Monteiro, Hugo Abreu e outras figuras-chave na época. A pedido dele passei a freqüentar a Vila Militar, para ouvir comandos intermediários. E depois da posse do Figueiredo, em 1979, Dines redirecionou a cobertura, juntando meu trabalho na área com o do Henrique Lago, que passou a ser meu parceiro no levantamento de matérias sobre a repressão.
Conte como foi isso, mudou o eixo da cobertura?
A.L. –
Eu continuei a cobertura do sistema, identificando fissuras no poder, alterações de comando, mas abrimos o leque. Fazendo a ponte com os presos políticos, com o Lago, é claro, porque eu não tinha acesso a eles e nem sempre era bem vista – aquela velha paranóia. Começamos a apurar as histórias das prisões, dos desaparecimentos, que queriam dizer morte, lógico, mas o nome era "desaparecimento". Nessa época fizemos a matéria História secreta da guerrilha urbana no Brasil, que na verdade apurou e confirmou 13 mortes e suas circunstâncias. Foram duas páginas da Folha em 79, assinadas por Henrique Lago e Ana Lagôa. A repressão achou até que era gozação. Mas não, nossos sobrenomes são Lago e Lagôa, fazer o quê?
Como foi apurar essa matéria, quem eram as fontes?
A.L. –
Generais, coronéis, majores. Gente que queria falar, que via a coisa escapando do controle. Um deles sempre dizia que estava contando casos para se preparar para o "Julgamento de Nuremberg", pois o pêndulo da história viraria para a esquerda. É engraçado, eles começaram a pensar nisso já em 75. Um carcereiro do DOI-Codi disse a uma amiga: "Olha, eu te tratei bem, lembra disso quando a coisa virar." Mas voltando à matéria da Folha, as fontes nos recebiam em casa, em visitas sucessivas, e diziam assim que entrávamos: "Sem papel, sem papel.".
Como sem papel?
A.L. –
Não podíamos anotar nada. Eles falavam, falavam, falavam, e não podíamos anotar uma palavra. Eu decorava os nomes dos militares, e o Henrique os dos militantes. Saíamos dali correndo para anotar tudo no carro, um ajudava o outro a reconstituir a entrevista toda. A paranóia era total, tínhamos medo de estar sendo seguidos, tomávamos táxis diferentes para voltar.
E como era seu comportamento diante de uma fonte assim?
A.L. –
Eu interagia com ela. Porque eu tinha me apropriado da linguagem dos militares para poder ter respostas pessoais, como as que se tem numa conversa, e não aquelas respostas construídas das entrevistas. Para me apropriar dessa linguagem eu até freqüentava sebos atrás das bibliotecas que as famílias dos generais mortos vendiam. E comprava os livros mais importantes.
E essa matéria ganhou prêmio?
A.L. –
Nós mandamos para o Esso, mas acho que não se premiava matéria desse tipo na época.
Mas a barra já não estava menos pesada?
A.L. –
Que nada, a bomba do Riocentro foi em 81! E também as da OAB, da Tribuna da Imprensa, das bancas de jornal. Na verdade, era um momento-limite do processo.
Os torturadores trocaram o porão pelo esgoto.
A.L. –
E aí eu pirei. A sucursal da Folha tinha fechado em agosto de 80, no dia seguinte à visita do papa. Fiquei parada uns meses e depois fui para o Estadão, ainda cobrindo a área militar. Estava em casa vendo televisão quando tocou o telefone: era do jornal. Explodiu uma bomba no Riocentro. Foi uma coisa indescritível. Cada vez que pensava que iam jogar uma bomba para matar 2 mil pessoas eu tremia. Com 20 dias de apuração, pedi demissão: "Não quero mais isso na minha vida", eu disse. Estava tomando Valium para agüentar.
Mas por que isso?
A.L. –
Eu estava cobrindo o caso e acompanhava a investigação paralela, do coronel Dickson Grael, porque na investigação oficial não saia nada. Cada reunião do grupo do Grael era passada aos jornalistas de confiança como um ponto [encontro clandestino de militante da esquerda], os locais eram aparelhos [esconderijos da esquerda]. Abriam uma fresta da porta, um revólver apontado pra você, até você se identificar. Lá dentro, as revelações abalavam a alma. Não dava mais. Além disso, no Estadão eu não tinha o suporte, a cobertura que a Folha me dava em Brasília e no Rio. Não tinha nenhuma segurança. E desisti.
E o que sobrou desse período brabo?
A.L. –
Várias coisas. Eu continuei por um bom tempo alerta, sempre achando que havia alguém vigiando. Falando sempre pouco. Mas o pior, profissionalmente, foi só saber escrever nas entrelinhas. Fui ser assessora de imprensa do Betinho, no Ibase. Fazia um boletim chamado Brasil Informação, que circulava em inglês, francês e português descrevendo a situação do Brasil para exilados brasileiros. Ele queria textos explícitos, mas eu escrevia cifrado. Escrevia e reescrevia. Foi um longo e sofrido reaprendizado. Levei meses para voltar a escrever um texto direto, a não falar tudo por metáfora, como eu aprendera desde novinha. Betinho e Caio Graco [dono da Editora Brasiliense, filho de Caio Prado Jr., professor da USP e velho teórico do Partidão] me incentivaram a fazer uma terapia: escrever um livro sobre o sistema de informações. Era 1982, mas eu já trabalhava com computador, um Scopus, e em uma semana, fechada numa salinha, escrevi o livro que a Brasiliense editou. (SNI: como nasceu, como funciona).
E a vida estava mais fácil?
A.L. –
De jeito nenhum. As janelas do Ibase eram lacradas. As cartas eram abertas no quintal da casa, porque tínhamos medo de que mandassem uma bomba para acabar com o Betinho, que estava ali todo dia. É impressionante, isso tudo não tem nem 20 anos. Por isso eu vivo dizendo à garotada na redação: "Esses problemas de hoje não são nada." A moçada não faz idéia do que era ser jornalista na ditadura. Eu sou feliz, eu sobrevivi. E tive dois mestres da pesada, Leleco e Betinho. Sem eles talvez não tivesse conseguido.
E com um baita arquivo de quebra.
A.L. –
Nessa altura, era mesmo um baita arquivo. Mas eu odiava aquilo tudo. Vivia ameaçando queimar, inclusive os livros comprados muitas vezes com minhas economias, alguns às escondidas, na velha Brasiliense da Rua Barão de Itapetininga, em São Paulo, onde Caio Graco deixava os jovens estudantes lerem livros que estavam "sumidos" do mercado. Em 96 comecei a espalhar que queria doar os recortes e os livros. Estava editando os textos da revista Ciência Hoje, enquanto fazia o mestrado na Praia Vermelha, quando conheci o trabalho do professor João Martins. Eu tinha que editar um artigo dele sobre o governo Costa e Silva e a imprensa, e quis falar com ele por telefone. Na conversa ofereci o arquivo. Alguns meses depois ele foi à minha casa em São Paulo e levou tudo. Quando o carro dele virou a esquina, cheio dos registros daqueles anos das nossas vidas, me senti livre finalmente. Fechou-se um ciclo de vida naquele momento.
Você acha que vale a pena um repórter fazer arquivo atualmente?
A.L. –
Sempre vale. Principalmente para quem lida com temas específicos, mesmo existindo a Internet e tudo o mais. O que você guarda, guarda com seus olhos e mente, é sempre diferente do que o outro guarda. Ainda mais hoje, que é preciso ter pós-graduação. Se ele for para uma pós, terá sempre um material próprio, às vezes só dele, para analisar em algum projeto.
Por que você resolveu doar o arquivo?
A.L. –
Resolvi doar porque queria me livrar do peso, mas também queria que fosse útil a quem está fazendo tese sobre política e ditadura, que servisse para contar alguma coisa a alguém. Não queria ganhar dinheiro com ele, nada. A UFSCar cumpriu todos os meus pedidos, o professor João, que é o responsável pelo projeto, é impecável, promoveu uma palestra minha lá no campus para explicar a criação do arquivo quando ele foi inaugurado. Significativamente, falei aos estudantes no auditório Florestan Fernandes. Foi a única vez em que falei em público sobre o acervo e sua história. Na verdade, não gosto de falar dessa idade média das nossas vidas. Sobrevivemos e somos livres; isso é o que importa. Meu acordo com a UFSCar foi que o arquivo não se fechasse a sete chaves, como outros que conheço. Que fosse preservado. Que as pastas fossem organizadas de acordo com o meu critério original, e não pelos métodos universais de codificação. Mas que todo trabalho que saísse dali citasse a fonte. O trabalho de São Carlos deu sentido ao meu trabalho. É meu legado. Meu grafite de jornalista.
Os temas do arquivo
Seguindo exigência da doadora, os assuntos disponíveis no Arquivo Ana Lagôa estão organizados de uma maneira mais do que "amigável", como se diz na informática. Nada de nomes enigmáticos cheios de letras e números que, além de não identificar o objeto arquivado, escondem do pesquisador a palavra-chave que desvenda os caminhos da busca. No AAL, é procurar é achar.
Eis os blocos de assunto: Anistia; Araguaia; Caso Baumgarten; Caso Frota; Caso Herzog; Caso Mario Eugênio; Caso Parasar; Caso Rubens Paiva; Caso Saraiva; Clube Militar; Direita: Atentados; Esquerda: Ações; Esquerda: História; História Militar; Igreja; Lei de Segurança Nacional; Material Bélico: Aeronáutica; Material Bélico: Exército; Material Bélico: Marinha; Material Bélico: Engenharia Militar; Material Bélico: Vendas de Armas; Material Bélico: Temas Gerais; Militares: Currículos; Movimento Estudantil; Nacionalismo: Caso Serpa; Nacionalismo: Geral; Política Geral; Política Militar: discursos, ordens-do-dia; Política Militar: Orçamento; Política Militar: Sucessão; Relações Brasil-EUA; Repressão: América Latina; Repressão: Censura; Repressão: Leis; Repressão: Mortes; Repressão: Organismos; Repressão: prisões, processos e julgamentos; Riocentro; Temas Gerais.